quinta-feira, 5 de junho de 2008

A última noite

Nem as linhas verdes formadas pelo laser o agradam. O fantástico efeito das luzes em néon, que acentuava o branco e o fazia ver nas pessoas um brilho oculto e revelador, já não o divertia como outrora. A decoração lésbica e as grades que lembravam um ringue de luta livre não mereceram mais que dois segundos de contemplação. Assim começou a última noite de Jeremias.

Apática. Num ostracismo quase nostálgico, a cerveja arranhava a garganta e irritava o estômago. Não que não fosse afeito aos prazeres do álcool. Pelo contrário. Mas aquela era a última noite e, longe de configurar uma festiva despedida, moldou-se em um turbilhão psico-emocional que a prodigiosa poção fermentada só faria catalisar.

Jeremias sabia. Seria a última noite, indiscutivelmente. Em suas conversas transcendentais com a Lua, já havia sido prevenido. Embora ultimamente desconsiderasse os conselhos e as opiniões da velha companheira, teve que baixar o olhar e refletir diante da imensidão das suas certezas de matriarca empedernida. Assim sendo, arrumou-se para tal com a crença cega das mentiras que, de tão repetidas, acabam por virar verdades.

As pessoas felizes o irritavam. Dançavam como se disso dependesse as suas vidas. Bebiam como se disso tirassem algum prazer. Sorriam como se assim comunicassem sem dizer. A pequenez das vidas ao redor parecia carimbar em sua pele o aval das últimas noites. Mecanicamente, qual carro que se afoga em gasolina mesmo sem gostar do cheiro e unha que bóia em esmalte mesmo sem sentir a cor, Jeremias enchia o copo de cerveja. Antes de tomar, já sucumbia ao gosto acre e à ânsia de vômito. Mas continuava entornando. No quarto copo obrigou-se a ir ao banheiro e encarar, mais que o fedor e o nojo, seu próprio reflexo no espelho. E como o irritava o ar sabichão e acusador que tinha seu reflexo! Preferia muito mais sua sombra, que era muda e contentava-se em encará-lo com a não-expressão típica das sombras. Um recato que os reflexos de espelhos de bar ainda desconhecem.

Acompanhado da sombra, que fazia um esforço nebuloso para seguí-lo por entre o rastro dos néons e dos jatos coloridos que lançavam fótons em riste, Jeremias pensava em quão privilegiado era, pois apenas ele sabia que aquela era a última noite. Apenas ele poderia prever que o nada viria depois. Que os laseres afiariam-se como facas e decepariam todos os sorrisos dançantes e que as lésbicas sairiam das paredes para engolir a pista com um apetite ferino. Que o chão xadrez ficaria tão movediço quanto areia e dragaria os pés saracoteantes aos domínios inertes daqueles que nunca dançam.

E, por saber, tudo lhe passou a olho nu sem as menores conseqüências. Os laseres sequer raspavam sua cabeça. As lésbicas o evitavam com uma expressão quase amedrontada e o chão sob seus pés era tão firme quanto a certeza de que a última noite da humanidade era seu primeiro dia de glória.

*(tentativa de) conto para a cadeira de Jornalismo Literário.

6 comentários:

Luana Duarte Fuentefria disse...

agora li com calma.

e nunca mais vou te emprestar contos de garcía márquez. só faltava o jeremias sair voando. hehe

Rô Peixoto disse...

Quando o mundo acabar, as lésbicas vão ser as primeiras a morrer, é isso??

Eliane! disse...

Como assim, tentativa? tá ótimo, muito bom.
Já deixei reservado os sábados do meu próximo semestre pra cadeira de Jornalismo Literário \o/

Anônimo disse...

*(tentativa de) conto para a cadeira de Jornalismo Literário.

Se isso é uma tentativa, fico com medo só de pensar o que seria o teu conto pra valer...

Tá mtu bom, bjos.

Luana Duarte Fuentefria disse...

eu não te gosto mais...

tu não atualiza nem comenta no meu faz DOIS posts!!!

sentirás minha falta daqui a um mês e não vai adiantar chorar! :P

fernanda barreto disse...

;)