segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Relaxe e introduza

Sartre estava certo quando disse que o inferno são os outros. Já vivenciei, na prática, sua teoria. Foram apenas alguns minutos, mas pareceu uma eternidade. Fiquei preso no inferno feminino, refém da menstruação.

Tudo estava tranqüilo e sereno naquela sala. O computador, a mesa, os livros e a cadeira pareciam entrar em perfeita harmonia com o silêncio fúnebre do recinto. Eis que elas entram. Do abismo, queimando, surgem as emissárias do meu tormento. Em meio a sacolas e vozes agudas, o assunto ganha corpo. Absorvente interno ou externo? Eis a questão. Um tema polêmico que talvez nem Shakespeare conseguisse dimensionar.

Loira, ruiva e morena discutem, empolgadamente, as benesses e os desprazeres de se usar um absorvente interno. A morena, indignada, quer mudar de vida. Quer se libertar das amarras do absorvente externo. Não deseja mais ser vítima de vazamentos e incômodos cada vez que se levanta da cadeira. Aparentemente, ela não é sempre livre. Ao contrário, é prisioneira de seu próprio corpo. Sim, o problema era o corpo. As amigas tentavam ajudar. “Eu só uso o.b., é bem mais prático”. “Eu sei, mas eu não consigo, tenho problemas com o ‘relaxe e introduza’”, declarava, apreensiva. Eu tremi. Não esperava que chegassem tão longe. Entretanto, algo de místico, uma curiosidade mórbida e um certo instinto masoquista me prendiam àquela sala.

Abriram a caixa e retiraram o manual. Obviamente, eu não estava olhando, ouvir já era o bastante. Após a leitura completa das instruções, não restaram dúvidas quanto à dificuldade da morena. “Tá escrito aqui, ó, tu tem que relaxar e introduzir, é fácil”. Cheguei a sentir seus lábios tremerem e os batimentos acelerarem-se. Mas ela estava determinada. Iria relaxar. Conseguiria introduzir. As amigas sentiam-se felizes pela coragem dela. Ao chegar em casa, todos os seus problemas estariam menores frente ao grande obstáculo vencido. A menstruação seria enfim dominada.

No outro dia, na mesma sala, ela estava mais feliz. Já não era tão desconfiada. O brilho em seu olhar era evidente. Até a bolsa parecera diminuir de tamanho. Seria a falta do absorvente? Não se sabe. Nunca mais ousei tocar no assunto.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

As origens

A questão sexual sempre esteve presente. Desde o dia em que o primeiro macaco (ou macaca, por quê não?) começou a andar sobre duas pernas. Se bem que deve ter sido mesmo um macaco. Isso explicaria facilmente a dominação masculina durante milhares de anos.

Imagine uma grande tribo de símios quadrúpedes, quando, de repente, um deles se levanta! Que espanto! Pense só na sensação que deveria estar sentindo aquele único animal. Em pé, poderoso diante todo o grupo. Olhado, admirado, invejado. Superior perante seus iguais. Mais alto, mais rápido. Este pode ter sido o marco inicial da cultura machista.

E na frágil, porém já articulada, mentalidade daqueles seres, o que teria se passado? “Como nunca pensamos nisso antes?” diriam, se já dominassem a fala. Os outros logo tentariam fazer o mesmo, pondo-se, pouco a pouco, em pé. As fêmeas teriam mais dificuldade. Não devia ser fácil levantar-se com o peso dos filhotes, sem falar dos mamilos. E as grávidas, então, quanto trabalho teriam passado nos primeiros momentos. Primeiras tentativas de equiparar-se ao macho. De mostrar que também podem.

Mas, e se tivesse sido uma macaca? E se fosse uma fêmea a precursora dos bípedes? Esse fato alteraria toda a vida no planeta até os dias de hoje. É fácil imaginar os machos babando ao seu redor. Admirando, desde aquele momento, suas curvas, nunca antes notadas. As pernas – ainda que cheias de cabelos – começavam a despontar a libido do bando. O que se seguiria, além da dominação feminina, seria uma explosão populacional sem precedentes. A pré-história nunca mais seria a mesma. Com o boom habitacional, o ritmo de desenvolvimento se aceleraria. A sociedade chegaria a todos os seus momentos mais marcantes com pelo menos uns 800 anos de antecedência! Seria a inversão dos papéis que hoje se assiste. E tudo isso, claro, de maneira muito natural, sem causar espanto. Afinal de contas, foi uma mulher quem se levantou primeiro.

Os homens, oprimidos e relegados a um papel secundário na sociedade, logo se organizariam em sindicatos e associações para exigir seus direitos. O dia internacional do homem seria um dia de protestos e manifestações. O movimento machista seria visto por uns (ou umas) como uma ameaça. Outros achariam justo a igualdade de gêneros. Os mais antigos aceitariam passivamente sua condição inferior de homem.

É, talvez essa pequena diferença tivesse alterado os rumos da civilização.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Só para neuróticos (2)

Tudo começou naquela noite fria e sem graça de um sábado qualquer. A parada de ônibus estava deserta, bem como pareciam estar a rua e a cidade. A única coisa que se ouvia era o ruído áspero do vento e a conversa de dois seguranças mais ao longe, daqueles que atendem por logradouros e saem apitando pelos prédios.

Pois bem, nada da condução chegar. Espero... Mas alguém chega. Sinto cheiro de cigarro e penso “decerto não vai vir fumar ao meu lado!”. Era um senhor de mais ou menos 40 anos, baixinho e calvo.

- Que ônibus tu pega?

Ãhn?!? Era comigo que ele estava falando? Pra que falar? Qual a necessidade de abrir a boca naquele frio, naquele silêncio tão raro em Porto Alegre?

- Qualquer um que vá para a Cristóvão - respondi, contrariado.
- Eu pego o Anita/Rio Branco.
- Hum...

Não estava com o menor saco para conversar. Até porque, logo em seguida, o velho começou a falar de assalto. “Pronto”, pensei, “serei assaltado”. Qual a razão para falar de assalto numa parada deserta às 21h? Recusava-me a dar conversa. Moro na Capital há mais de um ano e nunca sofri uma abordagem sequer. Seria muito azar, justo numa ida ao caixa eletrônico, ser assaltado. Tudo o que eu tinha era um cartão bancário, duas fichas escolares e (droga!) meu celular. Uma série de pensamentos passou pela minha cabeça paranóica: “O cara é mais velho e mais baixo que eu, não tenho porque entregar meu celular. Posso sair correndo, posso bater nele.” Nessa hora, comecei a rir. Imaginei-me numa luta com o pequeno senhor e o riso foi inevitável.

- Hoje eu vou dançar!

Putz! O que foi que ele disse? Vai dançar? Que ótimo, assim me deixa em paz! E esse ônibus que não vem nunca. Bom, pelo menos parou de falar de assalto.

- Tu tens que aproveitar a tua juventude. Tem o que, 24 anos?

Era tudo o que eu precisava. Um conselho de alguém que eu nem conheço às 21h10min e que ainda me deixou uns cinco anos mais velho. Já estava afim de voltar pra casa. Dane-se o dinheiro.

- Pois é...
- A minha juventude é diferente da tua. Eu agora sou casado. Separado! – e fez questão de frisar a última palavra – ascendeu mais um cigarro.
- Hum...
- Por isso hoje eu vou dançar!

Já estava me sentindo ridículo. Olhando melhor, é claro que ele não iria me assaltar. Ainda estava na dúvida se era louco ou se, a qualquer momento, apareceria uma câmera e alguém gritaria “ahá, te peguei!”. Bom, como a segunda opção não aconteceu, nem o velho me pareceu deficiente mental, concluí que ele devia estar apenas feliz. É natural que pessoas felizes demais façam coisas ridículas (tipo anunciar a um estranho que vai dançar). Enfim, chegou meu Carlos Gomes/Salso. Antes de partir, o senhor ainda largou outro “Mas hoje eu vou dançar!” seguido de um cordial “Tchau, garoto!”

- Tchau, boa festa – respondi.

Entrei no ônibus vazio e pensei se era o velho que estava muito feliz ou eu que estava muito triste.