sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Um mal sigiloso

Existem coisas que simplesmente não nasceram para mim. Coisas que não combinam ou que, de alguma maneira misteriosa, não se adaptam a minha ínfima existência terrena. Poderia enumerar uma lista mirabolante dessas efemérides. Contudo, a mais significativa e inexplicavelmente horripilante delas é aquela brincadeira (divertida?) típica das festas de final de ano chamada ironicamente de amigo secreto.

Várias são as lendas que tentam explicar o seu surgimento. Uns dizem que surgiu na Inglaterra, a partir do século 15, quando se estabeleceu a noite do dia 24 de dezembro para a troca de presentes. Fontes históricas afirmam que a prática é muito mais arcaica. Viria desde a Grécia antiga onde, em algumas datas festivas, costumava-se presentear pessoas influentes que eram escolhidas ao acaso. A versão que mais me parece verossímil, contudo, é a de que o amigo oculto teria sido uma atividade recreativa adotada nos Estados Unidos durante o início de seu processo industrial. Segundo essa variante, os funcionários eram obrigados a participar de uma confraternização onde tinham que presentear os companheiros de trabalho. O sorteio teria sido a melhor forma encontrada para se evitar que alguém ficasse sem presente devido a brigas internas ou à impopularidade junto aos colegas. Pode-se observar, então, que a inocente brincadeira natalina emerge de uma prática altamente autoritária e terrivelmente desestimulante. Sim, pois quem não quer participar se vê obrigado a fazê-lo. O que acaba gerando um ciclo de descontentamento que, com toda a certeza que os meus 19 anos de jogador pífio desta escabrosa seita me conferem, atingirá de forma letal e fulminante o pobre presenteado. O suposto “amigo”.

Com o passar do tempo e a conseqüente evolução do homem, aboliu-se a obrigatoriedade do amigo secreto. Em partes, é claro. A pressão social para que uma pessoa participe dessa atividade senil é imensa. Aquele que, por puro exercício de seu livre-arbítrio, não integrar a roda do amigo oculto pode ser informalmente excluído do grupo ou, de uma maneira mais discreta, deixado de lado. Deveria haver um decreto, uma medida provisória ou um projeto de lei que estabelecesse seguridade social aos não-participantes do amigo secreto. Seria uma pauta tão importante que a CPMF sequer valeria os subterfúgios que estão sendo usados para comprá-la. Dá para imaginar o Congresso Nacional em polvorosa para votar tal medida. Oposição e situação se uniriam em prol do bem comum. Realmente, seria um fato histórico. Uma página a mais nos livros didáticos.

Enquanto isso não acontece, sigo com a minha sina amigosecretística, sem coragem de deixar de participar e com a eterna esperança de que um dia me darei bem. Doce ilusão. Integro a seita desde que nasci. Na minha família, até os bebês participam. Numa subversão total dos princípios, as respectivas mães ficam encarregadas do “amigo” da criança que sequer pode responder por si mesma. Não tenho escolha. E, apesar de tomar parte no jogo desde muito antes de aprender os pedregosos meios pelos quais ele se impõe, nunca tive o prazer de sair feliz da brincadeira. Sabe aquela pessoa mala da família? Sim, ela me tirava. Ou vice-versa. Quanto aos presentes, bom, vou me abster de comentá-los. Até porque o melhor não é o bem físico que pode trazer o amigo secreto, mas, sim, os benefícios psico-sociais que ele acarreta.

A mim, obviamente, nunca trouxe nenhum. O amigo oculto é uma atividade totalmente previsível para os meus 19 anos de experiência. E não se trata de clarividência. Muito menos de qualquer tipo de agouro ou rabugice. No meu caso, o amigo secreto é a mais pura comprovação física da teoria nietzscheziana do eterno retorno: tudo se repete em algum momento da vida. Pretendo um dia ser forte e autodidata o suficiente para quebrar as amarras que me prendem a esse jogo macabro. Me livrar desse inimigo clandestino que me persegue todos os anos. Até lá, resta apenas fazer a já tão ensaiada cara de bunda e depois, quem sabe, escrever um texto para exorcizar o atroz ritual.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Os banheiros e a consciência social

Dentre os tantos clichês que a contemporaneidade nos impõe, um é, certamente, indubitável. Vivemos na era da informação. Em todo o momento, somos bombardeados por uma torrente de signos, palavras e expressões que buscam a nossa atenção. Em meio ao frenesi desvairado da internet e à apatia sensacional da televisão, perdemos um pouco a capacidade de prestar atenção às futilidades cotidianas. Como as frases de banheiro coletivo.

Um lugar quase sagrado, o banheiro é onde entramos em contato com o extremo ser interior. Possui diversas utilidades (desde a higiene básica até os lampejos de narcisismo que fazem a pessoa ficar horas em frente ao espelho) e não é reconhecido. Ninguém louva essa peça fundamental da casa. Ninguém quer saber do banheiro. Usam-no apenas pra fazer merda, literalmente. Mas não percebem que é no bucólico recinto que pensamos sobre as coisas da vida, refletimos os pequenos fatos do dia e, até mesmo, cantamos desesperadamente as melodias mais inesperadas ao chuveiro. Quem nunca desenterrou aquela música que sequer lembrava existir na hora do banho?

E nos toaletes públicos aparece uma fantástica contradição. Não somos mais os únicos responsáveis pelos dejetos que lançamos. Na porta ao lado pode haver alguém na mesma situação. E na do lado da do lado, também. Todas padronizadas, com o mesmo tamanho e escondendo as mesmas intimidades. Esse caráter coletivo da podridão do animal humano deve, misteriosamente, ativar um certo comportamento expressivo ancestral. As portas possuem desenhos os mais diversos. Algo que lembra as pinturas rupestres dos nossos primos neandertais. Será que eles também as concebiam em momentos de profunda introspecção? Não há como dizer, mas as pinturas banheirestres merecem mais atenção.

Entre obscenidades e xingamentos a times de futebol rivais, pode-se achar verdadeiras pérolas. Já vi de tudo. Desenhos de sexos expostos, Bob Marley com suas cannabis e toda a sorte de frases de caminhoneiro. Preciosidades como “Nas curvas do teu corpo capotei meu coração” mostram que o ser humano também pode poetizar enquanto defeca. Entretanto, me prendeu os olhos, dia desses, as manifestações revoltadas encravadas numa porta. “Universidade estatal já”, “fora à PUC” e “educação para todos” cativaram meu inconsciente. Ainda que um tanto exageradas, as frases mostram uma consciência social incipiente. Não estavam pichadas nas paredes sujas da Av. Borges de Medeiros, nem em qualquer faixa de partido político. Estavam na porta de um banheiro público. Ao lado, o mesmo misterioso autor ou autora escrevera “igualdade aos analfabetos e excluídos, fim às (crase minha) desegualdades sociais”. Em seguida, outra grafia e outra tinta destacavam o erro monstruoso da palavra desigualdade e assinalavam: “por que será que ainda há desigualdade?”. Menosprezei o tom preconceituoso do comentário em prol de um pensamento maior. O que se assistia era a um debate travado às portas do banheiro! Algo magnífico e inédito para mim, eterno reparador dos aforismos banheirescos. Pensei em puxar uma caneta e revidar. Xingar os dois. Relutei. Imaginei as faxineiras tendo que esfregar incessantemente as portas e achei melhor não colaborar com a sujeira.

Mas o pequeno debate me instigou. Certamente, o ser humano está evoluindo a um patamar considerável. Ser capaz de pensar nos problemas sociais enquanto realiza atividades totalmente intimistas é um sinal de, no mínimo, esclarecimento próprio. Sinal de que não olhamos apenas para a própria merda, mas, sim, para a merda alheia. Para o que todos nós fizemos ou ainda fazemos de ruim e que culmina nessa grande pocilga brasileira. Um dia alguém ainda puxa a descarga.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Crime feminino

Se eu fosse mulher, seria uma ladra. Uma assaltante de bancos, mais especificamente. As mulheres são tolas, ainda não perceberam o enorme potencial que possuem. Há todo um nicho mercadológico feminino para as que quiserem seguir carreira.

Aconteceu ontem, antes de ontem e sempre. Vem acontecendo há um ano, desde que abri contas em duas redes bancárias do país. Primeiro, vem o apito. Em seguida, uma voz metálica e acusadora denuncia: “Você está portando objetos metálicos, coloque-os no compartimento ao lado e tente novamente.” Mas as chaves e o celular já estão no tal compartimento. O que é que falta, afinal? É aí que acontece. Abro a mochila e, não satisfeitos, os seguranças ordenam que eu folheie o caderno e revele tudo o que há nos seus compartimentos. Todas as folhas soltas e amassadas, os pacotes de chicletes e bolachas recheadas são expostos. Livros, contas para pagar, nada passa despercebido ao olhar atendo dos guardas. “Tudo bem”, penso, “afinal é o procedimento padrão deles, é para a segurança do banco”. Após o penoso processo, que provavelmente irrita a todos os que estão esperando, posso finalmente entrar no paraíso capitalista.

O clima de uma agência já não é muito confortável. Aquele cheiro de ar artificial, os caixas milimetricamente organizados e o excesso de sinalização produzem um misto de segurança e desconforto. Como se tudo estivesse perfeito, esperando por você. Até cafezinho eles oferecem! Até você fazer sua conta, é claro.

Mas a surpresa maior é a facilidade com que as mulheres têm acesso ao local. Se a voz acusa que um homem está portando objetos metálicos, ocorre todo o criterioso método já descrito para a revisão. Entretanto, se uma mulher é denunciada, o segurança lança um olhar complacente e permite que a dama se dirija ao balcão de atendimento. A revisão, no máximo, restringe-se a uma olhada não muito discreta nas curvas suntuosas da fêmea, se ela as possuir, é claro. Ela poderia facilmente portar uma arma e mesmo assim entrar. Idosas, então, sequer são olhadas. Passam direto, como se a porta não existisse. Imagine, se eu fosse uma velha, ganharia a vida assaltando bancos. Sem mais problemas financeiros. Afinal, quem suspeitaria de uma senhora aparentemente inocente ou das curvas bem delineadas de uma jovem estagiária? E as mulheres ainda reclamam mais direitos! Já possuem até o direito de roubar! O que mais falta reivindicar? Ainda bem que não se dão conta do poder que têm nas mãos. Ou melhor, nas curvas. Caso contrário, nem a década de 70 veria tantos assaltos a banco. Seria o fim do capitalismo moderno.

Estupefato, resigno-me a minha inferioridade de macho. Espécie recessiva e minoritária. Falho de curvas suntuosas e de regalias em agências bancárias. Eternamente sujeito a humilhações mochilescas para poder pagar uma conta.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Rosas ao preconceito

“Não”. Foi com essa palavra que ela transformou a história dos direitos civis nos Estados Unidos. Tudo o que Rosa Parks queria era voltar para casa tranqüilamente após uma tarde de trabalho. A costureira negra de 42 anos acabou o dia na prisão.

O ano era 1955. Na cidade de Montgomery, estado do Alabama, as leis racistas imperavam. Não era diferente em todo o sul do país. A escravidão havia sido abolida há quase um século (1865), mas, na prática, pouca coisa mudou. Dentre as exigências da ignorância, estava a de que os negros deviam sentar-se somente nos bancos traseiros dos ônibus e, se o veículo estivesse lotado, deveriam ceder o lugar aos brancos.

Rosa Louise McCauley nasceu no Alabama em 1913. Filha de uma professora, ela aprendeu desde cedo a importância dos valores humanos. “Minha mãe era professora em uma pequena escola, ela acreditava em liberdade e igualdade para as pessoas.” Após concluir os primeiros estudos, Rosa mudou-se para Montgomery com seu marido, Raymond Parks. Lá, em 1943, juntaram-se à National Association for the Advanced of Colored People (NAACP), entidade que defendia o direito dos negros. “Eu trabalhei em inúmeros casos com a NAACP, mas nós não tínhamos publicidade. Era mais uma questão de tentar desafiar o poder e deixá-lo saber que nós (os negros), não queríamos continuar sendo cidadãos de segunda classe”, declarou, em entrevista ao site www.achievement.org.

Aconteceu no dia 1º de dezembro de 1955. A costureira saiu do trabalho numa loja de departamentos e sentou no primeiro banco para pessoas de cor, no meio do ônibus. Três paradas mais tarde, o veículo encheu e faltou lugar para um homem branco. Como regia a lei, o motorista ordenou que quatro passageiros negros se levantassem. Rosa recusou. Foi considerada culpada, teve que pagar fiança para sair da cadeia e perdeu o emprego.

O episódio de 1955 não foi, contudo, algo novo em sua vida. Ela sempre lutou pela igualdade de direitos. O que aconteceu naquela tarde de 1º de dezembro foi uma inevitabilidade. “O incidente não foi planejado, mas já era esperado por causa de toda a tensão que havia entre negros e brancos na época”, confessou a costureira em uma entrevista dada pouco antes de morrer à revista Aventuras na História.

Seu pequeno gesto resultou num boicote geral dos negros à empresa de ônibus da cidade. Sob a liderança de um então desconhecido pastor local, Marin Luther King Jr, a população negra de Montgomery ficou 381 dias sem pisar num coletivo. “Nós tínhamos outras opções, como ir a pé ou de carona para o trabalho. Já o sistema de transporte não, pois poucos brancos andavam de ônibus. Sem os negros, os prejuízos foram enormes”, afirmou Rosa. O resultado do protesto foi significativo. Em 21 de dezembro de 1956, a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucionais as leis racistas do Alabama.

Em 1957, devido a constantes ameaças de morte, Rosa mudou-se com seu marido para Detroit, no estado de Michigan. Trinta anos depois, criou o Instituto Rosa & Raymond Parks para o Autodesenvolvimento. Na organização, a viúva (Raymond faleceu em 1977) e uma equipe de voluntários trabalham com mais de seis mil crianças e jovens entre 11 e 17 anos. Como Rosa bem define, “nosso trabalho é fazer com que cada um descubra o que há de melhor em si mesmo”.

Ao refletir sobre os acontecimentos mais marcantes de sua vida e do mundo em geral nos últimos 48 anos, Rosa tem consciência de que ainda há muito a ser feito. “Vivíamos uma segregação racial legalizada e andávamos de cabeça baixa. Os brancos pensavam que eram superiores e não houve um único dia em que eu não tenha me sentido humilhada. Hoje temos os mesmos direitos que eles. Mas ainda há muita desigualdade e injustiça. O caminho é longo.” E, para ela, certamente o caminho foi extenso. O reconhecimento pelo seu esforço, porém, foi tão nobre quanto as ações que realizou em vida. Entre dezenas de prêmios, Rosa recebeu do então presidente Bill Clinton, em 1999, a Medalha Presidencial da Liberdade, a maior condecoração oficial que um civil norte-americano pode almejar.

Na noite do dia 24 de outubro de 2005, aos 92 anos de idade, a pioneira morreu por causas naturais. Seu enterro foi comparável ao de uma autoridade, contando, inclusive, com a presença do presidente George Bush. A vida e a obra humanitária da “mãe do movimento dos direitos civis”, como ficou conhecida, não será jamais esquecida. Ao menos todo dia quatro de fevereiro ela será lembrada no estado de Michigan. Às segundas-feiras, após essa data, é sempre feriado. É o Dia de Rosa Parks.


Fotos: achievment.org