quarta-feira, 14 de maio de 2008

Esperança a estibordo

A rua Santa Catarina é escura. As árvores pendentes e a ausência quase total de postes dão um ar de algo meio brejo-urbanizado, meio urbe-embreada. Fica a umas três quadras do antigo hospital Lazarotto, hoje prédio oco encravado na onomatopéica avenida Assis Brasil. Lá, na ruela florestosa com nome de Estado, se entoca um marujo malfardado com um passado tão turbulento e oscilante quanto as estourantes ondas marinhas.

“Sim, senhor, senhor!”. Posso imaginar o ex-marinheiro, ex-guerrilheiro, ex-torturado, ex-exilado, ex-não-anistidado, ex-militante-treinado-em-Cuba, ex-utópico Avelino Capitani bradando, lá pelos idos de 1960, num quartel carioca da Marinha. Mas, ao abrir a portinhola enferrujada e rangenta do bloco de casas porto-alegrense onde mora, não diz nada. A roupa denuncia o saudosismo (ou seria o hábito?) da farda cerimoniosa. A calça é branca e entra em total harmonia com os sapatos. Não fossem tecidos velhos e de malha xexelenta, o conjunto poderia ser confundido com a suntuosa veste de um marinheiro. Faltava-lhe, nos ombros arqueados, as estrelas e umas três daquelas flechas diagonais que enfeitam de pujança e brio o ombro ereto de um militar.

Mas militar já não é. Não o tem sido desde 1964, quando a caserna cravou suas baionetas em Brasília e vestiu a toga rasgada da justiça e o terno negro da política. Capitani, àquela época, era dirigente da Associação dos Marinheiros e foi um dos líderes da fracassada revolta que os companheiros de farda tentaram fazer contra o golpe.

Sentado na poltrona laranja, fuma o segundo Carlton vermelho e assopra rodelas cinzas de fumaça. Como aquelas que os marinheiros fazem nos desenhos. As de Capitani saem tortas e voláteis. Sobem até a altura dos seus cabelos e parecem se misturar a eles, reforçando a cor amarelo-desbotado e cinza-sujo que os caracterizam.

“Eram dez mil soldados a postos para atacar três mil marinheiros aquartelados”, puxa Avelino pela memória, enquanto diverte-se com as rodelinhas cancerígenas. E como é que ele foi parar lá, no meio daquela muvuca toda? O lajeadense só queria uma coisa. Entrou na Marinha por um motivo apenas: o estudo. Como era pobre, viu na armada das águas uma oportunidade para continuar aprendendo.

“O lápis da gente era na ponta da enxada”, graceja o marujo, referindo-se à infância interiorana, quando cursou até não mais que a 4ª série. A decisão de se alistar não foi nobre nem patriótica. “Um dia eu estava na praça XV comendo um picolé e sentou um marinheiro do meu lado e começamos a conversar”. Foi assim, meio que por acaso, que Capitani almejou ser almirante. Mal sabia ele, na ingenuidade dos 20 anos, ao se candidatar à Marinha, que acabaria na então Guanabara amotinado com um bando de esquerdistas. Avelino não sabia de muitas coisas. Na efervescência da metrópole conheceu Marx, Marcuse, Debray e a realidade brasileira do início dos anos 1960.

Em 1966 resolveu passear pela Serra do Caparaó, no Espírito Santo, e, junto com mais uns vinte homens, formou o primeiro foco de resistência armada à ditadura tupiniquim. “Analisando hoje, foi uma loucura. Mas, na época, a gente não pensava assim. Nós éramos soldados latino-americanos comandados, em instância internacional, por Che Guevara”. A história mostra, contudo, que nem o sangue latino, nem a presença de Che na vizinhança, nem o apoio de Brizola, nem o treinamento em Cuba foram suficientes para impedir que vinte guerrilheiros tornados em frangalhos sucumbissem ao poderio do exército em 1967.

No Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), Avelino virou Charles. Com uma pistola 45mm em mãos, ele ganhou fama. Não foi só a música de Jorge Ben que o consagrou. “Na época, me chamavam de ‘gatilho de ouro’”, confessa, não sem um certo regozijo no olhar encovado de olhinhos negros e fundos. Após o fracasso das férias em Caparaó, Capitani refugiou-se no então pacífico Uruguai, onde pretendia rearticular-se com Brizola e seus aliados. De lá, passou por Bolívia, Argentina e Chile. Voltou para um Brasil pós-68 e ajudou a guerrilha urbana nos assaltos a bancos.

Hoje, o ex-muitas-coisas não tem pudor em falar sobre o passado. Alguns guerrilheiros enlouqueceram ou trancafiaram-se no mais inerte silêncio. Capitani não. Vítima da crueza de um regime que torturava e matava, ele fala sobre o assunto com relativa tranqüilidade. “Hoje, eu tomaria um cafezinho com o meu torturador”, confessa Avelino. A frase não soou tão sádica quanto, de fato, parece. Acontece que Charles superou, além da dor física, a outra dor. Aquela que quebra a alma. O corpo, visivelmente, encontrou o caminho da regeneração e, ao que parece, apesar do cigarro, Capitaini esbanja saúde com seus um metro e oitenta e tantos distribuídos num esqueleto estável, ainda que com todas as mazelas da idade e do passado.

Apesar da aparente calmaria, Avelino não esconde algumas seqüelas. Marcas tanto físicas – que se denunciam na aspereza da pele e na profundidade chorosa do olhar – quanto abstratas – navegando no limbo dos pensamentos atormentados e dos sonhos perdidos. “A tortura é o que há de mais desumano no ser humano”, confidencia, ao descrever os mais atrozes meios de se machucar uma pessoa. Num fôlego de confiança e otimismo em meio aos relatos cavernosos, admite: “Ainda tenho pesadelos, mas são menos freqüentes desde que eu consegui ‘perdoar’!”. As mãos gesticulantes formam aspas no ar e espalham ainda mais a fumaça do sétimo Carlton vermelho pelo ambiente diminuto da sala. Perdoar é um conceito meio torpe quando aplicado em tão extravagante caso. Só posso concluir que, salvo a hipótese de Avelino ser um ente divino e livre de imperfeições, ele se expressou mal. E, dimensionando melhor sua assertiva, complementa: “Eu não quero morrer abraçado ao meu torturador”.

Sem abraços, sem glória e sem revolução. É assim que vive Charles quarenta e quatro anos depois do golpe que alterou inexoravelmente o rumo de suas naus. Jorge Ben tem razão ao cantar que o Anjo 45 é o “Robin Hood dos morros”. Capitani, que nunca foi Almirante de fragata, nunca pendurou um diploma de faculdade na parede bege da sua sala e não ostenta estrelas nem honras militares, agora trabalha em algumas ONGs e faz uns bicos quando dá. Contemporâneo ao beatle John Lennon, Avelino estende as velas , hasteia a bandeira irrecolhível da esperança, mira o horizonte a estibordo e brada, provavelmente, uma das poucas certezas que tem na vida: “Meu sonho ainda não acabou”. A voz de Charles ainda flutua sobre a laringe gasta do velho marujo.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Alice no país do futebol

Na segunda-feira do dia 5 de maio, a sala 206.05 do prédio 7 da PUCRS foi inundada. Não, não tem nada a ver com a torrente tresloucada que transformou o Rio Grande em cenário bíblico de dilúvio. Foi uma inundação sublime e delicada. Alice Bastos Neves, repórter esportiva da RBSTV, enxugou o marasmo pós-final de semana dos futuros jornalistas da turma 349 com uma conversa descontraída sobre esporte.

Formada em 2005 pela PUCRS, Alice nunca pensou que fosse trabalhar no meio esportivo. “Eu saí daqui (da faculdade) com a firme idéia de fazer jornalismo cultural”, confessa, e revela que sua monografia foi sobre a revista Aplauso. Também jamais lhe ocorreu atuar em outra mídia que não fosse a revista: “Na faculdade, o meu foco nunca foi a televisão”. Através de uma amiga e de um “conjunto de sorte, talento e dedicação”, Alice conseguiu uma vaga no cobiçado espaço da RBSTV.

Sem familiaridade nenhuma com campos, bolas, pistas e maratonas, a recém-formada de 23 anos começou acompanhando as equipes de reportagem no RBS Esportes, programa que busca dar maior visibilidade ao desporto olímpico gaúcho. Apesar de apenas dois anos de experiência na área, Alice já pode pendurar uma medalha de ouro em seu currículo. Em 2007, ainda meio-amadora, meio-veterana; foi ao Rio de Janeiro cobrir os jogos Pan-Americanos. “Uma coisa que me impressionou muito num grande evento foi a burocracia”, admite Alice, que, visivelmente, não faz o tipo cerimoniosa. Vestida com uma calça jeans azul justa, é possível notar a dança rítmica das unhas brancas acompanhando a blusa de gola alta da mesma cor enquanto gesticula.

Questionada sobre o espaço nada democrático dado a outros esportes na cobertura jornalística, Alice é taxativa: “O futebol envolve muito dinheiro e muita paixão”. E, com um ar mais confiante, ressalva: “Mas a gente está conseguindo abrir espaço”. Como lida rotineiramente com casos de superação, esforço e realização, a repórter-Alice não consegue se distanciar da pessoa-Alice. “Me envolvo absolutamente”, revela a jornalista. “Não tem como não se envolver, tu acabas criando uma relação de dia-a-dia com esses caras”, diz, referindo-se aos exemplos de superação de atletas gaúchos, como o caso do esgrimista João Souza, que já tem vaga garantida em Pequim.

Porto-alegrense natural de Pelotas, Alice não alimenta grandes ambições. No país do futebol, ela defende a bandeira dos jogos amadores. Queria cultura e, com o esporte, aprendeu que a vida pode tomar rumos inesperados e, nem por isso, menos interessantes. Cutucada sobre ser gremista ou colorada, Alice, como boa jornalista que pisa no tortuoso território dos gre-nais, apresenta um álibi incontestável: “Torço para o Brasil de Pelotas”.