segunda-feira, 23 de junho de 2008

Reducionismos

Dentre todos os clichês e lugares-comuns que é possível ouvir atualmente, nenhum me irrita mais do que a afirmação de que “hoje em dia os valores não são mais respeitados”. Essa expressão está presente em todos os espaços cotidianos. Das conversas de ônibus aos textos acadêmicos. Ela permeia o imaginário brasileiro de que, em épocas passadas, havia um certo nível moral mais elevado. Nada poderia ser mais estúpido.

Eu gostaria de perguntar aos propagadores desse infeliz aforismo: Quando os tais valores foram respeitados? Aliás, a noção de valor, por si só, é arbitrária e extremamente subjetiva. Mas, enfim, admitindo-se que exista um conjunto de doutrinas morais e éticas que supostamente regem uma sociedade, quando eles foram respeitados em escala infinitamente maior? No Brasil-colônia, quando houve um genocídio das culturas nativas, a total exploração das riquezas nacionais e os governadores-gerais cometiam toda sorte de extravagâncias? No Brasil imperial, com a discriminação aos negros recém “libertados” por uma lei que sequer lhes assegurava um mínimo de dignidade? Nas primeiras décadas do século XX, quando a intensa urbanização sofrida pelas metrópoles brasileiras, especialmente o Rio de Janeiro, enxotou os pobres para os morros e tentou transformar, pelo garrote, a Capital da República numa espécie de Paris tupiniquim? Nos anos 1950, época em que Juscelino desestimulou a indústria nacional, arregaçou o país às multinacionais e os brasileiros deram vivas aos enlatados norte-americanos? Não vou nem comentar o período 1960-1980. Décadas em que “lei” e “ordem” tinham significados muito mais obscuros e cruéis. Passamos, então, aos anos 1990. Me pergunto quais valores podem ser extraídos da privatização de uma nação, de homéricos índices inflacionários e de um governo tão podre que consegue se auto-reeleger.

Portando, queridos interlocutores da perda de valores, dêem uma olhadinha para trás antes de saírem por aí escrevendo, gritando, cuspindo que “hoje em dia, os valores não são mais respeitados”. Não vivemos tempos felizes, com certeza. Mas o que é a noção de felicidade, senão a busca não-palpável por uma perfeição que não podemos alcançar? Quem tem autoridade para dizer que o jovem de hoje é pior que o jovem de 40 anos atrás? Os que apregoam a deterioração dos costumes são, na verdade, mentes extremamente conservadoras sem perspectiva histórica. Fazem crer que vivemos em uma era devassa porque eles mesmos não têm coragem de olhar para o próprio umbigo e verem o quanto são responsáveis pela merda em que pisam.

sábado, 21 de junho de 2008

Desgovernadora Yeda na berlinda

É, viva o novo jeito de (des)governar! E viva a habilidade, o dom que o brasileiro tem de rir dele mesmo!

quinta-feira, 5 de junho de 2008

A última noite

Nem as linhas verdes formadas pelo laser o agradam. O fantástico efeito das luzes em néon, que acentuava o branco e o fazia ver nas pessoas um brilho oculto e revelador, já não o divertia como outrora. A decoração lésbica e as grades que lembravam um ringue de luta livre não mereceram mais que dois segundos de contemplação. Assim começou a última noite de Jeremias.

Apática. Num ostracismo quase nostálgico, a cerveja arranhava a garganta e irritava o estômago. Não que não fosse afeito aos prazeres do álcool. Pelo contrário. Mas aquela era a última noite e, longe de configurar uma festiva despedida, moldou-se em um turbilhão psico-emocional que a prodigiosa poção fermentada só faria catalisar.

Jeremias sabia. Seria a última noite, indiscutivelmente. Em suas conversas transcendentais com a Lua, já havia sido prevenido. Embora ultimamente desconsiderasse os conselhos e as opiniões da velha companheira, teve que baixar o olhar e refletir diante da imensidão das suas certezas de matriarca empedernida. Assim sendo, arrumou-se para tal com a crença cega das mentiras que, de tão repetidas, acabam por virar verdades.

As pessoas felizes o irritavam. Dançavam como se disso dependesse as suas vidas. Bebiam como se disso tirassem algum prazer. Sorriam como se assim comunicassem sem dizer. A pequenez das vidas ao redor parecia carimbar em sua pele o aval das últimas noites. Mecanicamente, qual carro que se afoga em gasolina mesmo sem gostar do cheiro e unha que bóia em esmalte mesmo sem sentir a cor, Jeremias enchia o copo de cerveja. Antes de tomar, já sucumbia ao gosto acre e à ânsia de vômito. Mas continuava entornando. No quarto copo obrigou-se a ir ao banheiro e encarar, mais que o fedor e o nojo, seu próprio reflexo no espelho. E como o irritava o ar sabichão e acusador que tinha seu reflexo! Preferia muito mais sua sombra, que era muda e contentava-se em encará-lo com a não-expressão típica das sombras. Um recato que os reflexos de espelhos de bar ainda desconhecem.

Acompanhado da sombra, que fazia um esforço nebuloso para seguí-lo por entre o rastro dos néons e dos jatos coloridos que lançavam fótons em riste, Jeremias pensava em quão privilegiado era, pois apenas ele sabia que aquela era a última noite. Apenas ele poderia prever que o nada viria depois. Que os laseres afiariam-se como facas e decepariam todos os sorrisos dançantes e que as lésbicas sairiam das paredes para engolir a pista com um apetite ferino. Que o chão xadrez ficaria tão movediço quanto areia e dragaria os pés saracoteantes aos domínios inertes daqueles que nunca dançam.

E, por saber, tudo lhe passou a olho nu sem as menores conseqüências. Os laseres sequer raspavam sua cabeça. As lésbicas o evitavam com uma expressão quase amedrontada e o chão sob seus pés era tão firme quanto a certeza de que a última noite da humanidade era seu primeiro dia de glória.

*(tentativa de) conto para a cadeira de Jornalismo Literário.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Renascer

A cor da idade é verde. Verde-água. Verde-musgo. Verde-mar. Daquele mar que só as praias brasileiras conseguem moldar. Mas as paredes de concreto caiadas em verde que compõem a cor da idade estão bem distantes da praia. Ao contrário, estão encravadas no coração de Porto Alegre e fazem parte da pintura de um tal Menino Deus, na avenida Getúlio Vargas.

A via com nome de ditador nanico é o lar de um lar. Lá, entre prédios residenciais, comércio intenso e concentração extraordinária de mendigos, vive Arcanjo Raphael. A casa geriátrica batizada de divindade ostenta com certo orgulho as paredes-mar inauguradas há cinco anos. Um letreiro quadrado e alto formaliza as boas-vindas e informa os visitantes: “Casa de Repouso Arcanjo Rapahel”. As letras são gordas e verdes. O portão caído de ferro cinza não intimida e confere um ar ainda mais recolhido ao prediozinho de dois andares que parece esconder uma idade bem mais antiga que a de seus moradores.

Cerca de 19 funcionários zelam por 27 idosos. Técnicos de enfermagem, faxineiras, cozinheiras e médicos são os moirões que seguram a estrutura de paredes verdes. Cuidam de “donas” e de “seus” que passam o dia a contemplar. Contemplar é a atividade mais espetacular que se aprende num asilo. Contempla-se o passado, o presente e o vindouro. Contempla-se a própria essência do ser. A morte é uma ameaça a cada degrau e a vida entra sussurrante pelo vão das janelas, pelos raios de sol e, de uma maneira bem mais mecânica e pré-fabricada, pela televisão. As poltronas e os sofás estofados abundantes conhecem vidas inteiras. Os quartos, individuais ou coletivos, abrigam histórias que até mesmo as paredes verdes desconhecem. O pequeno pátio de piso frio representa o ápice da existência. Escoltado pelo portão cinza caído, ele configura a tradução mais literal que as palavras liberdade e vida podem significar para os 27 filhos de Arcanjo Raphael.

“Eu moro aqui há quatro anos”, revela Eny. Vítima de um distúrbio mental que a faz parecer meio abobalhada, Eny Terezinha Pereira da Rosa toma uma xícara de achocolatado e come um punhado de bolachinhas amanteigadas. Daquelas que só se encontra em casa de vó. No banquinho do pátio, ao seu lado, aproveitando o sol das 16h, estão dona Dica e dona Joana. Dica, ao contrário de Eny, transparece feições tristes e cansadas. A diabetes lhe tirou o doce da vida e a idade lhe emprestou o ar apático que seu meio-olhar transmite. “Come Dica, come uma bolachinha”, oferece Eny, indiferente à indiferença da amiga. Dona Joana é a mais comunicativa. Fala sobre tudo e sempre tem uma opinião. Como toda idosa de asilo, a vontade de contar é nela a principal arma contra a inércia. Dona Noeli, que conhece as paredes verdes há 10 anos, desde quando a casa ficava na rua Mariante, também conta. Mas conta números. “Quarenta e cinco, quarenta e seis, quarenta e sete...”, e assim continua. Talvez assim repasse os 99 anos de vida em sua memória. O leite que toma não vence a garganta e forma uma lagoa branca na boca até que algum funcionário mais atento a socorra com um pano.

“O meu quarto fica lá em cima”, aponta Eny toda orgulhosa para a janela de seu dormitório. Eny sempre traz no pescoço um colar de pedras negras e marrons. As unhas exibem o esmalte bege discreto e o rosto é a síntese absoluta de seus 74 anos. Cada ruga, cada sulco, cada mínimo traçado na pele denuncia a idade e a inocência de Eny. Os cabelos brancos e curtos formam ondas de pontas cinzas sob o rosto quase retangular. O nariz salta para frente com uma austeridade surpreendente, mas não exagerada. A boca esconde amarelos dentes grandes e espaçados. Mas o mais incrível é o olhar. A maioria dos homens e mulheres que vive no Arcanjo Raphael tem um olhar ensimesmado. Não triste, mas vago. Eny, não. Os olhinhos miúdos movimentam-se com tanta velocidade quanto sua fala. As frases atropelam-se e muitas vezes perdem o sentido. Entretanto, o olhar continua firme em sua rota horizontal, indo da esquerda à direita e freqüentemente repousando em uma das pontas. Quase nunca fita um objeto específico ou uma pessoa.

O quarto individual da dona dos olhos ziguezagueantes denota a simplicidade das necessidades e das vontades de uma vida aos 74 anos. Uma cama de solteiro, uma televisão antiga, uma minigeladeira, um roupeiro diminuto e uma cômoda. Uma, uma, uma. Tudo no singular. A sala do segundo andar, composta por um conjunto de três grandes sofás, é o antro de repouso de Noeli que, envolta em cobertores, continua em sua saga com os números. Dona Me, uma chinesa minúscula de 98 anos, esparrama-se pela poltrona amarela como gema de ovo e parece não notar o videoclipe da Shakira seminua que passa na TV antiga.

A rotina da casa é inabalável e Eny sabe disso. Pergunta freneticamente as horas a cada dez, cinco, dois minutos. “Às 18h eu tenho que jantar. Hoje vai ser sopa”, delicia-se. Boa parte das conversas com suas amigas se resume a novelas, aos afazeres diários da casa e a uma paixão geral. Tão geral que não escapa nem aos brasileiros asilados pelo Arcanjo Raphael. O futebol. “Aqui no segundo andar tem um monte de colorados”, brada Eny, com a certeza de, por isso, estar rodeada de boa gente. As senhoras comentam sobre as proezas do Inter e as baixas do Grêmio com a destreza de um moleque de 14 anos que joga uma pelada com seus amigos todo dia no campinho da esquina.

Muitos pensam que asilo é sinônimo de abandono. Equivocam-se. Nem sempre o ar gelado e a atmosfera nostálgica significam tristeza e saudosismo. Pelo contrário, podem atestar paz e serenidade. E ninguém mais gabaritada para ratificar essas afirmações do que Suzana Helena Morais da Silva, funcionária do Arcanjo Raphael há cinco anos. “Às vezes tu pensas que trabalhar aqui é só chegar, dar banho, limpar eles e deu. Mas não. Tu aprendes muita coisa da vida”, reitera. E não haveria lugar mais propício para o questionamento de Suzana: “Tu vês, tanta coisa que a gente deixa de fazer. Pra quê? Tanta coisa que a gente guarda. Pra quê?”. Os frutos de cinco anos de trabalho permitiram à funcionária ter a coragem de criticar as doutrinas da vida e encará-la como uma veterana que já conhece suas artimanhas.

Na ânsia de enganar a solidão, muitas velhinhas agarram-se a um objeto ou a uma lembrança específica. Noeli se distrai com os números, Dica parece entreter-se com moléculas de ar invisíveis que trespassam seus olhinhos apáticos. Eny encontrou em Cláudia Regina uma razão para existir. Segurando a boneca com a mão e esquerda, sentencia: “Esta é minha filha, Cláudia Regina. Ela vive comigo há dois anos”. No meio das conversas, dos lanches e de qualquer outra ocupação que Eny possa ter, do nada, como se obedecesse a uma ordem vertical do cérebro, ela coloca a boneca rente à testa e balbucia um “né, minha filha?”, ou então algo como “ohh Cláudia Regina”, com aquela voz chorosa de adulto ao falar com cães e bebês. E inimigo de Cláudia Regina é inimigo mortal de Eny. Ela desdenha quem não gosta de bonecas e não suporta que façam pouco caso da filha. O amor de mãe fictícia é real e comprova-se pelo travesseirinho esponjoso que ocupa um lugar privilegiado ao lado do seu: ”Ela dorme comigo toda noite”.

Dentre todas as certezas que se pode ter sobre um asilo, nenhuma é maior do que a de que, uma vez velho, volta-se a ser criança. Assim como em qualquer outra casa de repousou, na Arcanjo Raphael os velhinhos precisam ser alimentados, lavados, tapados, medicados e toda uma série de ados que ficam perdidos entre o final da infância e o começo da velhice. Talvez seja uma maneira de enganar ou selar de vez o ciclo da vida. Volta-se ao começo. É quase como um mecanismo de defesa para enganar a idade ou a morte. É um renascimento que vai além do enxugamento do corpo e da mirradeza do esqueleto. É algo incompreensível até que se chegue nele. Só os 27 filhos do Arcanjo Raphael sabem, e como sabem, que os segredos da idade e do renascimento não podem ser alcançados por aqueles do lado de fora das paredes verdes.