domingo, 25 de outubro de 2009

O fazedor de chaveiros

Não tenho mais saco para ficar passeando em um shopping center. A atividade, que representava o suprassumo da diversão quando eu era criança e saía da pequena cidade de 40 mil habitantes para ir à Capital, agora se revela o mais modorrento dos passatempos.

Mas o resto da minha família adora. Passear por passear. Olhar as vitrines. Nada pode ser mais torturante, mais seviciador, mais masoquista do que olhar as vitrines. Mas bem, esse início é apenas para ambientar que, em uma tarde preguiçosa num estimado shopping center, enquanto esperava duas mulheres desbravarem as maravilhas da Renner, eu conheci ele, o senhor que fazia chaveiros. Fazia, não. Faz.

Me deliciando com o final de um livro delirante e psicologicamente enlouquecedor, eis que se aprochega ele ao meu lado, em um dos limpos bancos de madeira do local. Abre uma maleta preta, quadrada, e dela retira molhos e molhos de chaveiros, todos feitos de arame e com o mesmo formato oval. Depois, puxa um pedaço de papel, olha para os lados e enfim me pergunta. "Tem uma caneta?". "Claro", respondi, alcançando a suas mãos envelhecidas o objeto desejado. Volto ao alucinante livro, ao final da trama, ao orgasmo mental de conhecer o encaminhamento das personagens e àquela sensação de putaquepariu, que merda que acabou.

"Tu estuda?", pergunta, sem parecer incomodado em me incomodar. Ao que respondo com uma afirmativa seca, indicando que nada me interessa mais do que descobrir se enfim Ródion Románovitch iria se entregar, se Pulkéria Alieksándrovna iria descobrir o horrível segredo do filho e se Svidrigáilov continuaria bolinando uma miserável camponesa de 16 anos - tudo isso na Rússia czarista do século XIX.

"E qual é o teu nome?". "Samir". "Hein? Samil?". "Não senhor, Samir, com R de rato no final.". Imediatamente após descobrir meu nome, puxou da maleta um fio de arame e dois alicates. De uma maneira inexplicável para um senhor de 101 anos (idade que me assegurara ter), comecou a tecer no arame as letras S A M... E assim prosseguiu, com uma precisão cirúrgica. Só nesse momento é que fechei o livro e voltei para a Porto Alegre do século XXI. E notei o quão elegante era ele. Calça social preta e blazer bege, com gravata azul escura e camisa azul clara. Ok, combinar cores talvez não seja a sua especialidade, mas o fato de ter 101 anos, cabelos lisos brancos brotando aos tufos e coordenação motora de um pivete que foge da mãe ao fazer coisa errada, me fez não querer ver outra coisa.

Os que passavam eram capturados para a dantesca cena. Os vendedores das lojas ao redor cochichavam e apontavam. Uma mulher parou no banco ao lado para assistir. Em menos de dez minutos estava pronto. De um fio de arame feio e abstrato, seu Francisco Casela extraiu sentido e fez arte. Os dedos entortados pelo ofício e a mão de veias roxas pulsantes se mostraram mais capazes do que meu ignorante preconceito poderia crer. Imediatamente, me estendeu o chaveiro, complementando: "Toma, fiz pra ti. Tu merece, estava aí estudando e foi gentil comigo". Embasbacado, não consegui esboçar uma reação direta. Quando fez menção de sair, me levantei e lhe agradeci tao efusivamente quanto a peculiaridade da situação permitia. E foi assim que conheci o artesão de 101 anos que, munido de alicates, transforma arame em felicidade.