terça-feira, 3 de junho de 2008

Renascer

A cor da idade é verde. Verde-água. Verde-musgo. Verde-mar. Daquele mar que só as praias brasileiras conseguem moldar. Mas as paredes de concreto caiadas em verde que compõem a cor da idade estão bem distantes da praia. Ao contrário, estão encravadas no coração de Porto Alegre e fazem parte da pintura de um tal Menino Deus, na avenida Getúlio Vargas.

A via com nome de ditador nanico é o lar de um lar. Lá, entre prédios residenciais, comércio intenso e concentração extraordinária de mendigos, vive Arcanjo Raphael. A casa geriátrica batizada de divindade ostenta com certo orgulho as paredes-mar inauguradas há cinco anos. Um letreiro quadrado e alto formaliza as boas-vindas e informa os visitantes: “Casa de Repouso Arcanjo Rapahel”. As letras são gordas e verdes. O portão caído de ferro cinza não intimida e confere um ar ainda mais recolhido ao prediozinho de dois andares que parece esconder uma idade bem mais antiga que a de seus moradores.

Cerca de 19 funcionários zelam por 27 idosos. Técnicos de enfermagem, faxineiras, cozinheiras e médicos são os moirões que seguram a estrutura de paredes verdes. Cuidam de “donas” e de “seus” que passam o dia a contemplar. Contemplar é a atividade mais espetacular que se aprende num asilo. Contempla-se o passado, o presente e o vindouro. Contempla-se a própria essência do ser. A morte é uma ameaça a cada degrau e a vida entra sussurrante pelo vão das janelas, pelos raios de sol e, de uma maneira bem mais mecânica e pré-fabricada, pela televisão. As poltronas e os sofás estofados abundantes conhecem vidas inteiras. Os quartos, individuais ou coletivos, abrigam histórias que até mesmo as paredes verdes desconhecem. O pequeno pátio de piso frio representa o ápice da existência. Escoltado pelo portão cinza caído, ele configura a tradução mais literal que as palavras liberdade e vida podem significar para os 27 filhos de Arcanjo Raphael.

“Eu moro aqui há quatro anos”, revela Eny. Vítima de um distúrbio mental que a faz parecer meio abobalhada, Eny Terezinha Pereira da Rosa toma uma xícara de achocolatado e come um punhado de bolachinhas amanteigadas. Daquelas que só se encontra em casa de vó. No banquinho do pátio, ao seu lado, aproveitando o sol das 16h, estão dona Dica e dona Joana. Dica, ao contrário de Eny, transparece feições tristes e cansadas. A diabetes lhe tirou o doce da vida e a idade lhe emprestou o ar apático que seu meio-olhar transmite. “Come Dica, come uma bolachinha”, oferece Eny, indiferente à indiferença da amiga. Dona Joana é a mais comunicativa. Fala sobre tudo e sempre tem uma opinião. Como toda idosa de asilo, a vontade de contar é nela a principal arma contra a inércia. Dona Noeli, que conhece as paredes verdes há 10 anos, desde quando a casa ficava na rua Mariante, também conta. Mas conta números. “Quarenta e cinco, quarenta e seis, quarenta e sete...”, e assim continua. Talvez assim repasse os 99 anos de vida em sua memória. O leite que toma não vence a garganta e forma uma lagoa branca na boca até que algum funcionário mais atento a socorra com um pano.

“O meu quarto fica lá em cima”, aponta Eny toda orgulhosa para a janela de seu dormitório. Eny sempre traz no pescoço um colar de pedras negras e marrons. As unhas exibem o esmalte bege discreto e o rosto é a síntese absoluta de seus 74 anos. Cada ruga, cada sulco, cada mínimo traçado na pele denuncia a idade e a inocência de Eny. Os cabelos brancos e curtos formam ondas de pontas cinzas sob o rosto quase retangular. O nariz salta para frente com uma austeridade surpreendente, mas não exagerada. A boca esconde amarelos dentes grandes e espaçados. Mas o mais incrível é o olhar. A maioria dos homens e mulheres que vive no Arcanjo Raphael tem um olhar ensimesmado. Não triste, mas vago. Eny, não. Os olhinhos miúdos movimentam-se com tanta velocidade quanto sua fala. As frases atropelam-se e muitas vezes perdem o sentido. Entretanto, o olhar continua firme em sua rota horizontal, indo da esquerda à direita e freqüentemente repousando em uma das pontas. Quase nunca fita um objeto específico ou uma pessoa.

O quarto individual da dona dos olhos ziguezagueantes denota a simplicidade das necessidades e das vontades de uma vida aos 74 anos. Uma cama de solteiro, uma televisão antiga, uma minigeladeira, um roupeiro diminuto e uma cômoda. Uma, uma, uma. Tudo no singular. A sala do segundo andar, composta por um conjunto de três grandes sofás, é o antro de repouso de Noeli que, envolta em cobertores, continua em sua saga com os números. Dona Me, uma chinesa minúscula de 98 anos, esparrama-se pela poltrona amarela como gema de ovo e parece não notar o videoclipe da Shakira seminua que passa na TV antiga.

A rotina da casa é inabalável e Eny sabe disso. Pergunta freneticamente as horas a cada dez, cinco, dois minutos. “Às 18h eu tenho que jantar. Hoje vai ser sopa”, delicia-se. Boa parte das conversas com suas amigas se resume a novelas, aos afazeres diários da casa e a uma paixão geral. Tão geral que não escapa nem aos brasileiros asilados pelo Arcanjo Raphael. O futebol. “Aqui no segundo andar tem um monte de colorados”, brada Eny, com a certeza de, por isso, estar rodeada de boa gente. As senhoras comentam sobre as proezas do Inter e as baixas do Grêmio com a destreza de um moleque de 14 anos que joga uma pelada com seus amigos todo dia no campinho da esquina.

Muitos pensam que asilo é sinônimo de abandono. Equivocam-se. Nem sempre o ar gelado e a atmosfera nostálgica significam tristeza e saudosismo. Pelo contrário, podem atestar paz e serenidade. E ninguém mais gabaritada para ratificar essas afirmações do que Suzana Helena Morais da Silva, funcionária do Arcanjo Raphael há cinco anos. “Às vezes tu pensas que trabalhar aqui é só chegar, dar banho, limpar eles e deu. Mas não. Tu aprendes muita coisa da vida”, reitera. E não haveria lugar mais propício para o questionamento de Suzana: “Tu vês, tanta coisa que a gente deixa de fazer. Pra quê? Tanta coisa que a gente guarda. Pra quê?”. Os frutos de cinco anos de trabalho permitiram à funcionária ter a coragem de criticar as doutrinas da vida e encará-la como uma veterana que já conhece suas artimanhas.

Na ânsia de enganar a solidão, muitas velhinhas agarram-se a um objeto ou a uma lembrança específica. Noeli se distrai com os números, Dica parece entreter-se com moléculas de ar invisíveis que trespassam seus olhinhos apáticos. Eny encontrou em Cláudia Regina uma razão para existir. Segurando a boneca com a mão e esquerda, sentencia: “Esta é minha filha, Cláudia Regina. Ela vive comigo há dois anos”. No meio das conversas, dos lanches e de qualquer outra ocupação que Eny possa ter, do nada, como se obedecesse a uma ordem vertical do cérebro, ela coloca a boneca rente à testa e balbucia um “né, minha filha?”, ou então algo como “ohh Cláudia Regina”, com aquela voz chorosa de adulto ao falar com cães e bebês. E inimigo de Cláudia Regina é inimigo mortal de Eny. Ela desdenha quem não gosta de bonecas e não suporta que façam pouco caso da filha. O amor de mãe fictícia é real e comprova-se pelo travesseirinho esponjoso que ocupa um lugar privilegiado ao lado do seu: ”Ela dorme comigo toda noite”.

Dentre todas as certezas que se pode ter sobre um asilo, nenhuma é maior do que a de que, uma vez velho, volta-se a ser criança. Assim como em qualquer outra casa de repousou, na Arcanjo Raphael os velhinhos precisam ser alimentados, lavados, tapados, medicados e toda uma série de ados que ficam perdidos entre o final da infância e o começo da velhice. Talvez seja uma maneira de enganar ou selar de vez o ciclo da vida. Volta-se ao começo. É quase como um mecanismo de defesa para enganar a idade ou a morte. É um renascimento que vai além do enxugamento do corpo e da mirradeza do esqueleto. É algo incompreensível até que se chegue nele. Só os 27 filhos do Arcanjo Raphael sabem, e como sabem, que os segredos da idade e do renascimento não podem ser alcançados por aqueles do lado de fora das paredes verdes.

11 comentários:

Luana Duarte Fuentefria disse...

a-do-rei o final!

e só agora li com a devida atenção o começo. (q também adorei, claro)

Carol. SM. disse...

Muito delicado.
Lindo, lindo!

Rô Peixoto disse...

Um tanto poético... e lindo!


"As senhoras comentam sobre as proezas do Inter e as baixas do Grêmio"

Por que só as baixas do GRÊMIO??? Velhinhas bobas!!

Samir Oliveira disse...

ahaha acho que aí entra um pouco da opinião do autor! =P

viu viu, imparcialidade é um mito.

Rô Peixoto disse...

Vou respeitar só porque sei que é uma tradição de família! (e sei o quanto a família é adoradora do time!)hehehhe

Anônimo disse...

Samir, muito lindo! Demonstra a tua sensiblidade no olhar e na escrita. Parabéns!

Maria Luiza disse...

Só hoje vi este artigo sobre o Aracanjo Raphael casa geriátrica onde minha mãe Lúcia Ribeiro Marques está hospedada há quase três anos. Sempre recebendo o carinho da gerente Suzana Helena que procura agradar e dar atenção tanto para os velhinhos que ali vivem como para seus familiares.

Samir Oliveira disse...

Maria Luiza, ontem (dia 2 de maio de 2010) foi o enterro da minha tia Eny e esse texto foi lido. Foi emocionante, muito obrigado por compartilhar esses rabiscos.

Unknown disse...

Prezado Samir
A tua tia Eny era maravilhosa sempre com aquela boneca a Cláudia Regina. Mas podes crer que ela está em um lugar muito agradável.Obrigada pela atenção.
Maria Luiza De Antoni

Anônimo disse...

por favor, qual o telefone da clinia e o nome do proprietário?
grato
paulo

Anônimo disse...

o telefone e 30293590