sexta-feira, 25 de abril de 2008

Vargas, asilos e crises de consciência

Dia desses me veio um pensamento inusitado. Tenho uma tia-avó que sofre de alguns distúrbios mentais e está internada num asilo em Porto Alegre. Eni. Não, não é nenhuma onomatopéia desconhecida. É o nome dela mesmo. Eni passou a vida inteira com a mãe, que cuidou dela até o cansaço lhe ceifar a vida, há quatro anos.

Pois bem, essa breve contextualização é para dizer que, após dois anos morando na provinciana capital gaúcha, resolvi visitar a tia Eni. O asilo, ou melhor, a “casa de repouso” – odeio esses eufemismos hipócritas – fica na avenida Getúlio Vargas e tem inspiração divina: chama-se Arcanjo São Miguel.

Caminhando pela extensa avenida sem lixeiras, deparo-me com um número crescente de pedintes. Mendigos, moradores de rua, limpadores de pára-brisa. Gente que faz da grande avenida com nome de ditador nanico a sua casa. No percurso pelas oito quadras que me separam de São Miguel, peguei-me refletindo sobre a situação daquele lugar. Recheada de pedintes, a Getúlio Vargas remeteu-me ao paradoxal governo do homenageado pela malha asfáltica em questão.

É bem verdade que o caudilho gaúcho acabou com a política do café-com-leite e industrializou o país através do sistema de substituição de importações. Mas é inegável o caráter autoritário-populista de seu governo, que cooptou as massas e ditou os rumos do país com mãos de ferro após a implantação do Estado Novo, em 1937. Getúlio trocou uma oligarquia por outra. Ou melhor, outras. Agradando a massa excluída do país, o aclamado “pai dos pobres” conseguiu construir um consenso dócil e favorecer antigos setores do poder, como as oligarquias cafeeiras (vide o torra-torra de grãos realizado na época). Tudo isso, claro, com uma imagem de mudança, de progresso e de desenvolvimento. E o povo? O povo não se importava, afinal de contas já tinham um Ministério do Trabalho e a CLT. Formidável, não?

Bueno, tudo isso para dizer que, na promiscuidade daqueles pensamentos, em plena avenida, uma mulher me pede dinheiro. Sentada e escorada no muro de um suntuoso edifício, a mendiga era o retrato mais fiel da realidade brasileira – tanto em 1930, como hoje em dia. Minha mão cavouca, em vão, o bolso vazio. Bem na hora da abordagem, eu estava com um legítimo alfajor uruguaio na mochila. Pronto para ser deliciado. Era o último resquício de uma ida da minha mãe a Riveira. “Bá, não tenho dinheiro”, respondi, certo de que só a carteirinha do TRI habitava meu bolso. “Uma bolachinha?”, suplica a garota. Nesses momentos, a gente deve pensar rápido. Agir primeiro, refletir depois. Num ato instantâneo e quase involuntário, dei a ela o meu alfajor. “Mas tu vai ficá sem”, largou a mendiga. “Tu vai ficá sem”.

A grandiosidade da frase me comoveu. No auge de sua agonia, ela ainda se preocupa se eu vou comer ou não. A nobreza, a singeleza e o total carisma daquela mulher me cativaram de tal maneira que fiquei paralisado, com o olhar preso nela e a mente envolta em orgias interpretativas sobre a Era Vargas, o assistencialismo e a mesquinhez da elite brasileira. Só consegui murmurar um “não faz mal”, e continuei meu rumo, ciente da minha inferioridade perante tão altiva postura da marginalizada.

Nunca fui um defensor ferrenho do assistencialismo. Tampouco prego o Estado mínimo e a exclusão dos programas sociais, tidos como gastos parasitários por (argh!) Friedrich von Hayek, pai do neoliberalismo. Me vi, então, num debate interno. Fui assistencialista? Contribui com a perpetuação da mendicância no país? Ou apenas ajudei uma pessoa necessitada? Nesse caso, o argumento de “ensinar a pescar, em vez de dar o peixe” não se aplica. Não tinha como eu ensinar a mendiga a fabricar alfajores. Até porque, mesmo que eu soubesse fazer e ela aprendesse, não ficariam iguais aos semidivinos bolachões uruguaios. Enfim, fui para casa com essa pulga na orelha e um alfajor a menos. Mas com duas certezas a mais: de ter aliviado, minimamente, o sofrimento daquela mulher; e de ser totalmente inferior à nobreza de uma excluída da/de Getúlio Vargas.

7 comentários:

Anônimo disse...

Sempre faço questionamentos do gênero. Geralmente, não dou nada para os pedintes da rua. No entanto, têm vezes que são crianças tão fragéis ou mesmo adultos que parecem ter escrito na testa: "VÍTIMA DA SOCIEDADE". Fico com pena, fazer o que? Sou humana...
Bom texto, boas observações.
Beijo!

Eliane! disse...

Nas minhas primeiras semanas morando em Porto Alegre, eu sempre dava alguams moedinhas para quem me pedisse alguma coisa na rua. Eu morava no interior e volta e meia chegava alguém na minha casa com um balde de fruutas (quase podres) pra vender. Minha mãe sempre comprava mesmo que as frutas não tivesses utilidade. Mas depois de algum tempo na 'cidade grande', não tem como ficar ajudando todos. Se bem que quando algum caso isolado (como no teu ) não tem como virar a cara. Existe um caminho muito longo pela frente para podermos mudar essa realidade brasileria. Depois da abertura política, tivemos todos tipos de presidentes para nos provar algo. Entre eles, um brilhante sociólogo e, agora, um líder sindicalista. Se isso não deu certo, não sei o que mais dará.
Não sou completamente contra o assistencialismo. O que sou contra é esse capitalismo selvagem que a gente vive. Essa competição desleal. Passou pela minha cabela "Por uma outra globalização", do Milton Santos, para encerrar aqui.
Dica dada há uns tempoo numa aula do professor Biz (tá, ele pode escrever errado e ter livros mal diagramados, mas fico com a idéia).

Eliane! disse...

desculpa, escrevi demais. mas é que esses assuntos merecem.

:)

Luana Duarte Fuentefria disse...

Sr. Samir hitoriador-existencialista.

Mas essa é uma questão que passa pela cabeça de todo mundo que já deu "uma esmolinha" pelas ruas da vida. Juro que não sei te responder se isso é certo ou errado.

Eu é que não tenho coragem de negar comida pra um estômago vazio na minha frente.

Rô Peixoto disse...

Ta... e a tia Eni, como ficou? hehe


Poxa... morando no Centro, não tem como dar ajudas a todo mundo... de vez em quando, pra alguns que já conheço, dou alguma comida... mas nunca dou dinheiro... e, egoísmo meu, mas ficaria com o alfajor...

Beijos!

Liza Mello disse...

samir! até tu esqueceu da coitada da tia Eni! hehe

Carolina Tavaniello P. de Morais disse...

Nossa, eu sou uma monstra então. Não dou dinheiro nem comida. E olha que eu moro quase na esquina com a Getúlio. Não me compadeço mais, porque sei que, todos os dias, os mesmos pedintes vão me abordar! Tá, mas admito que já dei e tive essa mesma crise! hehe
Beijos