sexta-feira, 28 de março de 2008

Às Iracis

Poucas vezes a Rede Globo conseguiu me surpreender. Perdão. Várias vezes já fiquei estupefato com o nível de imbecilidade e de alienação emanado pelo brilho hipnótico de seus programas. Quis me referir a ser surpreendido por algo realmente bom. Algo que me cativasse à poltrona por um motivo mais nobre do que não ter nada para fazer, por exemplo.

Bueno, foi aí que descobri Queridos Amigos. Confesso que as minisséries globais nunca me despertaram muito interesse. Eram repletas de pretensas verdades e aberrações históricas. Mas essa, não. Sua sensibilidade lírica, o subjetivismo de suas interpretações e o caráter imperfeito de todas as suas personagens me deixaram surpreso. No primeiro capítulo, pensei estar no canal errado. Mas a telinha marcava insistentemente o número 12 no canto inferior direito (sim, eu integro a massa dos que possuem televisão aberta). Era a primeira vez que meus inexperientes ouvidos captavam palavras como “ditadura”, “redemocratização” e “repressão” saindo daquela freqüência. Daquele canal. Conferi de novo e lá estava o onipresente número 12.

Queridos Amigos consegue retratar uma época de enormes incertezas, a frágil transição para os anos 90, de uma maneira livre de estereótipos e sem dar voz a tão propagados mitos nacionais. Afinal, era praticamente o fim de uma era. O fim de muitos sonhos e o começo de algumas conquistas – poucas e falhas. E a minissérie mostra esse panorama sem reavivar pré-conceitos ou impor verdades absolutas.

Ontem, quando finalmente não tinha nem Pedro Bial e seus heróis, nem qualquer jogo do raio-que-o-parta contra o atlético-sei-lá-das-quantas, pude finalmente acompanhar de novo os anseios de Léo e companhia. Uma cena, em especial, me deixou vidrado. Alucinado em frente à tela. Sequer deveria ter piscado. Fernanda Montenegro, travestida de mãe de uma vítima da ditadura, colocava-se, por vontade própria, cara a cara com o algoz de sua filha, que ainda apresentava feridas psicológicas de um período de terror. Encarnada em dona Iraci, ela puxou um livro e leu para o carrasco, conhecido como “nenê”, as inenarráveis brutalidades escritas por sua filha. Confissões exorcizantes de males que a alma não descarta e que o tempo não relega aos confins do esquecimento. Ao rebater que “só cumpria ordens”, o torturador/estuprador levou uma bofetada na cara!

Vocês conseguem imaginar isso? Conseguem imaginar a ira de uma senhora de 70 e poucos anos que se atreve a esbofetear um homem capaz das piores atrocidades? Talento de Fernanda ou pieguice minha, eu pude sentir cada gota de rancor, mágoa e sofrimento destilada pelas palavras da atriz. O tabefe me fez dar um salto do sofá. Aquela mãe declamando selvajarias aos berros contra o demônio de sua cria pode até ser ficcional. Uma farsa encenada e cronometrada. E, por mais absorto que eu estivesse, ainda tinha consciência disso.

Entretanto, tão logo vieram as propagandas, surpreendi-me num choro súbito. Pranto de almas férteis que sentem pelos outros, sentia como se fosse eu o protetor de uma filha torturada. As lágrimas escorriam e me faziam pensar nas verdadeiras Iracis. Nas mães que viram seus filhos estropiarem-se por uma causa perdida. Por um idealismo desbundado ou por uma porralouquice desvairada. Teriam elas, também, iracundas leoas que zelam pela sua prole, deitado o peso de suas mãos na cara dos inimigos de uma geração?

Pode parecer besta, irrisório e, até mesmo, infantil. Mas eu dediquei aquele inesperado e incontido choro a todas as Iracis do Brasil. Pessoas que, com um pequeno ato de extrema coragem, deixaram uma marca em quem banhou este país de sangue, em qualquer época. Gente que teve a audácia de apontar o dedo para os “nenês” que circulavam, e que ainda circulam, livremente pelas ruelas e avenidas brasileiras.

*Passado esse momento de introspecção e angústia, dei-me conta do ridículo da situação: nunca poderia crer que um dia a Globo me faria chorar por um motivo desses.

13 comentários:

Rô Peixoto disse...

Nem me fala! Devido ao fim do BBB e o dia de não ser jogo, eu não pude ver meu adorado Queridos Amigos!!
Não perdia nenhum, até o brutal dia!!

Queria ter visto!!


Beijos!

Luana Duarte Fuentefria disse...

Essa mini série tem/tinha um gostinho de livro muito bem adaptado.

Só consegui ver capítulos assim, meio soltos, graças ao horário veiculado. Essa cena aí não vi, mas já quase chorei com a tua descrição. Imagina se eu tivesse visto!

Já que não vi tudo, vou ver se dou uma lidinha no livro 'Aos Meus Amigos'.

Carolina Tavaniello P. de Morais disse...

Samir, adoro quando tu coloca sentimento nos teus textos. Ficam sempre bons!
Beijos

Liza Mello disse...

estou tentando te imaginar chorando de emoção no sofá..hehehe

bah, mas muito bem escrito. tipo, podia ter ficado piegas, mas não ficou! e o começo ficou muito bom!!!

Gabriela Aerts disse...

Olha... pra mim, a Fernanda foi a única que prestou na minissérie. Não consegui acompanhar. Não gostei.

O teu texto ficou muito bom. Como a Carol disse, quando a gente consegue enchergar o sentimento nas letras, é porque algo de realmente bom tem ali.

Douglas Almeida disse...

Gostei da série, mas pouco consegui ver. Mostra um pouco para a juventude atual, que muitas vezes se mostra estática quanto ao abuso de poder que vemos até hoje e quanto à corrupção, que apesar de óbvia é tratada como "normal" ( sendo justificada essa opinião ociosa por: ah, todos os políticos são ladrões mesmo... ). Porém como disse o ator que viveu o personagem Benny na minissérie: "não é algo para se sentir saudade". Mas deve ser visto sim para saberem do que aconteceu com pessoas inocentes. Para quem viu e sentiu pena e se emocionou com a personagem de Denise Fraga saiba que foi uma dramatização baseada na realidade e que na minissérie viu-se apenas uma pessoa lesada, mas muitas foram com tamanha brutalidade daquele período.

Eliane! disse...

Samir, não acompanhei a mini série. mas lembro que um dia eu parei na Globo pra ver o que era aquele "programa" novo e me deparei com uma belíssima cena protagonizada, claro, pela Fernanda Montenegro. Lendo teu texto penso que eu poderia ter continuado no 12.
Sinal de que boas produções virão?

Samir Oliveira disse...

Tomara, Eliane, tomara. :)

Anônimo disse...

Eu não assisti "Queridos amigos". No entanto, teu texto provocou em mim vontade de ver. E olha que são poucas as coisas da televisão aberta que vale a pena ver de novo hehe. Beijo!

Giane Laurentino disse...

Pessoa!
Muito bom! Como te disse quando crescer quero escrever igualzinho a você. Olha eu vi essa cena. E te confesso que não chorei, mas com certeza é digna de lágrimas. Me deu vontade de continuar vendo a minissérie. A ditadura é o momento do país que mais me emociona. É uma grande sacada falar do que sobrou de um momento tão presente.
BJS

Luana Duarte Fuentefria disse...

Ei, minha leitura diária tá em coma? :(

Rô Peixoto disse...

Ando desbravando os outros rumos do teu!
Poxa! Que tanto jornalistas! haha

Beijos!

Rô Peixoto disse...

Ando comendo palavras... depois de teu vinha blog!