quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Os banheiros e a consciência social

Dentre os tantos clichês que a contemporaneidade nos impõe, um é, certamente, indubitável. Vivemos na era da informação. Em todo o momento, somos bombardeados por uma torrente de signos, palavras e expressões que buscam a nossa atenção. Em meio ao frenesi desvairado da internet e à apatia sensacional da televisão, perdemos um pouco a capacidade de prestar atenção às futilidades cotidianas. Como as frases de banheiro coletivo.

Um lugar quase sagrado, o banheiro é onde entramos em contato com o extremo ser interior. Possui diversas utilidades (desde a higiene básica até os lampejos de narcisismo que fazem a pessoa ficar horas em frente ao espelho) e não é reconhecido. Ninguém louva essa peça fundamental da casa. Ninguém quer saber do banheiro. Usam-no apenas pra fazer merda, literalmente. Mas não percebem que é no bucólico recinto que pensamos sobre as coisas da vida, refletimos os pequenos fatos do dia e, até mesmo, cantamos desesperadamente as melodias mais inesperadas ao chuveiro. Quem nunca desenterrou aquela música que sequer lembrava existir na hora do banho?

E nos toaletes públicos aparece uma fantástica contradição. Não somos mais os únicos responsáveis pelos dejetos que lançamos. Na porta ao lado pode haver alguém na mesma situação. E na do lado da do lado, também. Todas padronizadas, com o mesmo tamanho e escondendo as mesmas intimidades. Esse caráter coletivo da podridão do animal humano deve, misteriosamente, ativar um certo comportamento expressivo ancestral. As portas possuem desenhos os mais diversos. Algo que lembra as pinturas rupestres dos nossos primos neandertais. Será que eles também as concebiam em momentos de profunda introspecção? Não há como dizer, mas as pinturas banheirestres merecem mais atenção.

Entre obscenidades e xingamentos a times de futebol rivais, pode-se achar verdadeiras pérolas. Já vi de tudo. Desenhos de sexos expostos, Bob Marley com suas cannabis e toda a sorte de frases de caminhoneiro. Preciosidades como “Nas curvas do teu corpo capotei meu coração” mostram que o ser humano também pode poetizar enquanto defeca. Entretanto, me prendeu os olhos, dia desses, as manifestações revoltadas encravadas numa porta. “Universidade estatal já”, “fora à PUC” e “educação para todos” cativaram meu inconsciente. Ainda que um tanto exageradas, as frases mostram uma consciência social incipiente. Não estavam pichadas nas paredes sujas da Av. Borges de Medeiros, nem em qualquer faixa de partido político. Estavam na porta de um banheiro público. Ao lado, o mesmo misterioso autor ou autora escrevera “igualdade aos analfabetos e excluídos, fim às (crase minha) desegualdades sociais”. Em seguida, outra grafia e outra tinta destacavam o erro monstruoso da palavra desigualdade e assinalavam: “por que será que ainda há desigualdade?”. Menosprezei o tom preconceituoso do comentário em prol de um pensamento maior. O que se assistia era a um debate travado às portas do banheiro! Algo magnífico e inédito para mim, eterno reparador dos aforismos banheirescos. Pensei em puxar uma caneta e revidar. Xingar os dois. Relutei. Imaginei as faxineiras tendo que esfregar incessantemente as portas e achei melhor não colaborar com a sujeira.

Mas o pequeno debate me instigou. Certamente, o ser humano está evoluindo a um patamar considerável. Ser capaz de pensar nos problemas sociais enquanto realiza atividades totalmente intimistas é um sinal de, no mínimo, esclarecimento próprio. Sinal de que não olhamos apenas para a própria merda, mas, sim, para a merda alheia. Para o que todos nós fizemos ou ainda fazemos de ruim e que culmina nessa grande pocilga brasileira. Um dia alguém ainda puxa a descarga.

6 comentários:

Liza Mello disse...

SAMIIIR!
NÃO é um bost!

ah! com exceção de 'pinturas banheirestres'. hehehe te puxou demais..

adorei a última frase! muito 'revista'! hahaha

Giane Laurentino disse...

Bah ... muito bom criatura! Banheiro público é um experiência única ... boa ou ruim heheeh.
Melhor são os banheiros públicos daqueles lugares que paramos quando estamos viajando de carro ou ônibus ...
bjus

Luana Duarte Fuentefria disse...

Samirro! Fiquei de boca escancarada e com muita inveja desse texto! Acho que é a melhor coisa que tu já escreveu.


Vou até me abster de comentários...

Anônimo disse...

o grande Samir est� de volta! Valeu.

Anônimo disse...

me lembro que, quando eu estudava antropologia, lá o final dos anos 1980, havia umas pesquisas sobre o que era escrito nos banheiros. tenho um sentimento dúbio em relação a esses escritos nas paredes e portas. ao mesmo tempo em que acho uma porquice, às vezes considero quase como arte, uma versão claustrofóbica dos grafites...

Rô Peixoto disse...

No mínimo, nojento...
Ficar olhando pra merda alheia... posso até pensar nos outros, mas prefiro um lado social mais higiênico!! eheheheh

Brincadeiras a parte, muito bom... sem pudores...