segunda-feira, 25 de junho de 2007

O ritual

Existem pessoas que caem em nossa vida do nada. Podemos classificá-las em vários grupos e subgrupos de acordo com a finalidade a qual vieram: amor, amizade, encheção de saco, QI, etc. Mas, ultimamente, uma pessoa tem me chamado a atenção. É dona Dalila - uma velhinha de quase 90 anos que mora no meu prédio. Não, não estou apaixonado! Acontece que a figura ancestral de dona Dalila me intriga e comove.

A senhora vive sozinha em seu apartamento. Seu único parente conhecido é um filho misterioso que está nos Estados Unidos e lhe manda uma mensalidade de duzentos dólares. Claro, dona Dalila pode contar ainda com a parca aposentadoria do governo (será que ela espera na fila do INSS?). Seus gastos são, basicamente, com remédios, comida e com a assinatura da revista Caras. Como se não bastasse a vida solitária que leva, dona Dalila nunca deixa sua caverna. Sofre de osteoporose e se locomove com extrema dificuldade.

Pois bem, melodramas à parte, sua maior atividade consiste em esperar metodicamente a revista Caras. Uma vez por mês, ela deixa a penumbra de sua caverna e expõe-se à janela (afinal, é preciso respirar também). Quando chego da faculdade, lá está aquela figura estática, fitando o nada, com uma chave na mão. Não preciso nem perguntar. Diretamente do segundo andar, a chave dança nas mãos raquíticas da velha e entra em contato doloroso com meus dedos (por que diabos ela não embrulha a chave?!?). Abro a caixinha enferrujada do apartamento 204 e lá está a revista, com todas as informações necessárias à sobrevivência de dona Dalila. Rapidamente, ela joga sua sacolinha, onde devo por a revista e as chaves assassinas. Com eficiência inimaginável para uma senhora doente, ela puxa a sacola e, com um olhar sutil e vago, me agradece, encerrando seu ritual mensal de contato com o mundo dos vivos.

É assim. Todo mês, dona Dalila está lá. Ela nunca esquece. Nunca se atrasa. Nunca deixa cair a sacolinha e nunca embrulha o molho de chaves.


5 comentários:

Unknown disse...

nossa Samir!!! sinceramente... sempre te admirei muuuito e nunca escondi, sempre confiei em ti e achei q, se tu fosse escolher jornalismo, te sairias bem, se fosse fazer qualquer outra coisa, se sairia bem! mas confesso que estou pasma!!! Esse é o Samir que eu conheço heheeh surpreendendo sempre e sempre!!!
Beijãooooo

Liza Mello disse...

muito bom! ainda mais que tu fez 'numa sentada'.. numa hora dessas tu vai ter que levar a dona dalila para conhecer o mundo das idéis... Samir é o filósofo!!

Luana Duarte Fuentefria disse...

Hehe... a Dona Dalila é meio fantasmagórica, não é?
Tadinha dela...

vitor disse...

hummm... uma vez pensei em reunir pequenas história que seriam pequenos poemas. não uma poesia formal, construída com palavras, mas um poema-ação, digamos assim. um registro de pequenas cenas que teriam a força de uma poesia, quase um hai-kai de tão breves, tão breves como a rápida existência da ação. pois eu colocaria esta - tu parado no térreo, esperando a chave para libertar a revista da dona dalila -, como um destes poemas-ação.
:o)

Rafael Terra disse...

Acho que as pessoas precisam de "sentidos" pra viver, cada um tem o seu....Acho que o da Dona Dalila são as revistas.....